quarta-feira

Insulto em domicílio


Por Eugênio Bucci

A rede mundial de computadores inventou essa curiosa modalidade de interação: a entrega do desaforo em domicílio.

De casa mesmo nós abrimos o e-mail ou os sites para o qual escrevemos profissionalmente e damos de cara com o desrespeito que nos bate na cara. O pior é que, frequentemente, nem sabemos direito quem é que nos bombardeou com a agressividade sem fundamento. Há casos de missivistas que se escondem atrás de nomes fictícios e, aí protegidos, disparam aleivosias para todo lado. Fira quem ferir. Os terroristas do verbo ficaram mais desinibidos com o cyberanonimato.

Não é verdade que as barbaridades que nos chegam não nos abalam. Eu me abalo. Sei de muitos que se abalam do mesmo modo. Essas coisas nos atingem, fazem mal, impõem um grau de sofrimento, mesmo que pequeno. Essa história de ler desaforos e depois dar de ombros não é assim tão simples. A gente sempre sai machucado da experiência. Estamos submetidos, sem escudos, às injúrias que nos são entregues em casa na velocidade da luz.

Nisso tudo, o pano de fundo é a questão da liberdade. Não tanto a liberdade que não havia na época da censura, mas a liberdade com que nós mesmos, hoje, lidamos com a divergência. Sempre acreditei que coube – e cabe – à minha geração o desafio de igualar os homens naquilo que a sociedade de classes os diferenciou e de diferenciá-los onde a sociedade de massas os igualou. Isso está escrito num livro que publiquei em 1993 (O peixe morre pela boca, pela editora Scritta). Ainda acredito nisso. Devo essa formulação às leituras que fiz de Marilena Chaui e de Maria Rita Kehl, e faço questão de dar o crédito. Acredito em combater a desigualdade assim como acredito em promover a liberdade.

É por acreditar nisso que me assusto com a intolerância que aparece em episódios como esse da "ditabranda". Assustam-me os ataques gratuitos e injustos, mas ainda mais me assusto quando alguém se põe a satanizar aqueles que abraçam uma postura considerada "de direita", como se apoiar teses "de direita" fosse um crime. Crime é desprezar os direitos humanos, e esse crime foi praticado à esquerda e à direita. Acusam a Folha de ter uma inspiração "de direita" em seus editoriais. Não concordo com a acusação. Não vejo a Folha como cartilha do neoliberalismo ou qualquer coisa do gênero. Acima disso, porém, não vejo falta de legitimidade alguma em um jornal que expresse uma visão de mundo mais "à direita", desde que nos marcos da democracia. Será que alguém ainda pensa que só a "esquerda" tem as soluções para os problemas contemporâneos?

Vejo nessas satanizações um sintoma de intolerância, com a qual não posso compactuar. Vejo aí a mesma intolerância que há naqueles que ainda execram os socialistas só porque são socialistas. Esse carimbo, "de direita", não desqualifica ninguém, assim como o carimbo "de esquerda" não autoriza ninguém a atropelar o império da lei. Somos uma sociedade que inclui gente de diversas orientações ideológicas e todos devem ter assegurada a sua condição de interlocutores legítimos. Isso exige de nós uma prática e um discurso muito, mas muito distinto do que temos visto.

O compromisso com a liberdade reside justamente aí, na capacidade de reconhecer as diferenças e de vê-las como expressões igualmente dignas. No mesmo plano. A solução não passa por exigir que concordem conosco: a solução passa por ver na discordância respeitosa um ambiente propício à criatividade e às soluções que são maiores do que a formulação fechada de cada uma das partes. Não integro nenhum coro dos contentes, como insinuaram os leitores mais inflamados. Também não comungo do coro dos candidatos a vítimas eternas, que vêem em cada divergência um indício da perseguição das elites. As coisas não são assim.

Ou aprendemos a lidar com as contradições ou ficaremos marcando passo em doutrinas dogmáticas e autoritárias, que, para sorte de todos, já se provaram farsescas. A pior ameaça que hoje pesa sobre nós não vem mais dos potentados, mas dos fanáticos, sejam eles milionários ou miseráveis. As desigualdades sociais devem ser combatidas, repito. Devem ser combatidas sem tréguas. Mas não nos esqueçamos também de combater a intolerância. Em nós mesmos.

De minha parte, não sou fiel a nenhum senhor. Sou fiel apenas ao que penso e ao que sinto. Não é lá grande coisa, bem sei, mas o que eu sinto e penso não se pretende verdade universal – pretende-se apenas um argumento a mais que, em lugar de adesão, almeja alcançar interlocutores de boa fé, partidários da liberdade. E você ainda se pergunta de que lado está a verdade? É simples: a verdade não tem donos. A verdade mora logo ali adiante, num ponto além do alcance das minhas mãos. E das suas. Ou nós a tecemos juntos, na nossa intersubjetividade problemática, ou nada feito.

Quanto aos desaforos, guardo-os em casa, fazer o quê? Guardo-os como marcas do tempo, como rugas na testa. Eles não são limões dos quais se possa fazer uma limonada. São desaforos mesmo, que demoram um tempo para se dissolver através do organismo. Mesmo assim, penso que ainda podemos levar disso algo mais do que desaforos. Talvez uma pequena lição, ainda que mal sucedida, de liberdade. Talvez uma pedra do passado, que o ressentimento conseguiu atirar contra o futuro. Talvez uma torrente de excessos, nostálgica de alguma obscura ordem de exceção. De um lado e de outro. E mesmo assim vale a pena, porque toda interpretação é uma sentença em aberto.